terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

TÍTULOS DE CRÉDITO

2
LETRA DE CÂMBIO


2.1 Noções Gerais

A letra de câmbio não foi a primeira espécie de título de crédito a surgir – antes dela havia a nota promissória. No entanto, tendo em vista sua larga utilização no período de construção e sedimentação de toda a teoria que envolve os títulos de crédito, além de sua estrutura peculiar, foi a letra de câmbio eleita, pela unanimidade dos autores que tratam desse assunto, o título que melhor serve como padrão para o estudo dos fundamentos básicos dos títulos de crédito de um modo geral. Seguindo essa recomendação de modo geral. Seguindo essa recomendação de ordem didática, tomaremos a letra de câmbio como base para nossos estudos. Sendo assim, estudaremos essa espécie de título de crédito de forma generalizada, entre eles o aceite, o endosso, o aval, o vencimento, o pagamento, e o protesto, para, no final tratarmos dos demais títulos de crédito.

2.2 Histórico e regime legal

Muito embora existam algumas manifestações dando conta da existência de rudimentos da letra de câmbio no direito romano, é certo que foi na Idade Média que este instituto efetivamente ganhou relevância econômica e se desenvolveu. A Itália daquela época, especialmente suas cidades marítimas, era um importante pólo de operações mercantis. Os mercadores de então, no entanto, enfrentavam sérias dificuldades no que se refere à moeda utilizada para a aquisição das mercadorias. O primeiro obstáculo dizia respeito ao risco que significava o transporte de valores de uma cidade para outra e o segundo referia-se ao fato de que cada cidade cunhava sua própria moeda, cabendo ao mercador efetuar a troca da moeda de sua localidade pela moeda do local onde estava efetuando a aquisição de mercadorias.
A simples operação de câmbio – de troca de uma moeda por outra -, chamada de câmbio manual, resolvia o problema relacionado com a diversidade de moedas entre as várias cidades; no entanto, permanecia o inconveniente de o mercador obrigar-se a viajar transportando valores e correndo riscos de sofrer assaltos. Como forma de solução desse problema surge , então, a operação chamada de câmbio trajectício, operação pela qual o cambista (banqueiro da época) obrigava-se a entregar a moeda em um local diverso daquele onde a transação de câmbio estava sendo efetuada. Assim, junto com a cautio (instrumento lavrado pelo tabelião que indicava a obrigação do banqueiro de pagar o equivalente de uma moeda em outra, no prazo e tempo estabelecidos) era anexada uma carta do banqueiro receptor, ou seu correspondente, no lugar onde o pagamento deveria ser feito, com instruções para o pagamento de determinada quantia em moeda local. Era a chamada lettera di pagamento di cambio, que mais tarde passou a ser chamada apenas de lettera di cambi. Entretanto, devido a grande quantidade de cambio que era efetuado e também à demora considerável que esse pagamento necessitava, a cautioi caiu em desuso, restando á letra de câmbio prova inconteste da obrigação assumida pelo banqueiro de pagar, em outra praça, o valor correspondente em moeda corrente da praça de pagamento.
Por serem as feiras e os mercados pontos de encontro entre os comerciantes, nelas estavam sempre presentes os banqueiros, responsáveis pelo pagamento e recebimento de tais letras de câmbio. Note-se que nesta operação havia: a) o banqueiro (sacador-subscritor-eminente), que recebia o dinheiro em depósito e emitia a letra de câmbio; b) a pessoa que entregava o dinheiro (tomador-beneficiário) ao banqueiro e recebia a carta; e c) a pessoa que estava encarregada de efetuar o pagamento do dinheiro ou a quem a ordem de pagamento era dirigida (sacado). Muitas vezes, o sacado era mandatário do sacador. Com o passar dos tempos, o sacado não estava mais vinculado ao sacador, e, para que se fosse provado que deveria pagar pela quantia, criou-se o instituto do aceite, que nada mais é que a expressão da vontade do sacado, assunto este que será tratado em seguida. Foi pelo aceite que o tomador passou a poder exigir do sacado.
A letra de câmbio requer três (3) pessoas – um sacador (subscritor-eminente), um tomador (beneficiário) e um sacado -, não sendo, necessariamente, pessoas diferentes. Nesse sentido esclarece o art. 3° da Lei Uniforme sobre letras de câmbio (Dec. 57.663/66): a letra pode ser à ordem do próprio sacador, pode ser sacada sobre o próprio sacador e pode ser sacada por ordem e conta de terceiro.
Passada essa sua primeira fase consubstanciada no período italiano, surgiu em 1650, uma segunda fase da letra de câmbio, a do direito francês, no qual ela representa apenas um contrato de compra e venda que advinha de uma relação de delegação ou mandato. Em 1848, com o surgimento da lei cambial alemã, inicia-se a terceira fase da letra de câmbio – período alemão –, em que efetivamente é constituída a teoria sobre a letra de câmbio tal qual a conhecemos hoje.

2.3 Conceito

A letra de câmbio é uma ordem de pagamento que determinada pessoa passa a outra, perante a qual detém crédito, para que pague, a um terceiro, a soma em dinheiro nela indicada. Verifica-se nessa espécie de título de crédito a existência de três pessoas: a) o sacador, também chamado de emitente ou subscritor, que é a pessoa que emite, que saca a ordem de pagamento; b) o sacado, também conhecido como aceitante ou principal obrigado, pessoa para quem a ordem é dirigida; e c) o tomador, beneficiário ou credor, pessoa a favor de quem o título é passado.
Ordinariamente, a letra de câmbio se presta para que o sacador, em vez de efetuar o pagamento de uma determinada dívida diretamente ao tomador – seu credor – em vista de ter crédito perante o sacado, opta por emitir uma letra de câmbio, por meio da qual será satisfeito seu crédito perante o sacado, bem como o crédito do tomador perante o próprio sacador: Exemplificando: imagine-se que João é credor de Pedro e devedor de José exatamente na mesma quantia e com vencimento na mesma data. Em vez de João, à vista do vencimento das obrigações, receber o valor devido de Pedro e, em seguida efetuar o pagamento a José, resolve, com a emissão da letra de câmbio e mediante uma única operação, liquidar as duas relações de crédito e débito. Nesse caso, com a emissão da letra, João (sacador) dá ordem a Pedro (sacado) para que pague o valor, que, a princípio, lhe é devido, diretamente a José (tomador).
Nada impede, no entanto, que o sacador e tomador sejam a mesma pessoa. Imaginemos que Pedro deve a João determinada quantia. Nada impede que João (sacador) saque uma letra de câmbio, dando ordem a Pedro (sacado) que efetue o referido pagamento a ele próprio – João (tomador).
Menos comum, mas também possível, é a hipótese de sacador, sacado e tomador serem a mesma pessoa. Nesse caso, a letra de câmbio é emitida com o objetivo único de circular e representar uma dívida que o sacador/sacado/tomador tem perante um terceiro com quem fez o desconto do título. Em seu vencimento o portador do título irá procurar o sacado para que seja efetuado o pagamento do mesmo.

2.4 Requisitos essenciais

Além daqueles requisitos exigíveis em todos os negócios jurídicos, nos termos da lei civil, como é o caso da capacidade das partes, objetivo lícito e ausência de vícios (fraude, dolo, simulação, erro ou coação), chamados de requisitos intrínsecos, a letra de câmbio deve preencher outros requisitos, os requisitos extrínsecos. São eles (LU, art. 1°):
a) A palavra “letra de câmbio” inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redação deste título, sem que se permita a utilização de expressão equivalente. Referida locução deverá estar expressa no próprio texto do título, de forma que as pessoas que nele colocarem suas assinaturas terão plena ciência das conseqüências inerentes a este ato.
b) Ordem incondicional de pagar uma quantia determinada, não sendo possível que conste no título qualquer tipo de condição para seu pagamento, de forma que a eficácia da letra não dependa de qualquer fato estranho ao próprio título, nos termos do que determina o princípio da literalidade. A quantia fixada no título deve ser exata, não havendo como aceitar uma letra com indicação imprecisa do valor a ser pago – o valor dever ser certo e expresso em moeda. Não se admite que o pagamento se dê mediante a entrega de qualquer outra coisa senão uma determinada soma em dinheiro, isso para que todos aqueles que se vinculem ao título tenham a exata noção de seu valor.
Muito se discutiu a respeito da possibilidade de inclusão no título de cláusula de correção monetária ou indicação de determinada moeda estrangeira como eventual instrumento de correção monetária – forma de proteção utilizadas pelas partes contra os efeitos corrosivos causados pela inflação sobre o valor original lançado no título. Vozes levantaram-se contra essa possibilidade sob a alegação de que, ao se admitir qualquer espécie de correção do valor constante do título, estar-se-ia ferindo o princípio da literalidade inerente aos títulos de crédito, além de contrariar o estabelecido nos arts. 1º e 75 da Lei Uniforme, que determinam que na letra de câmbio e na nota promissória deverá constar “mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada”, sendo que, se for necessário realizar qualquer cálculo, qualquer operação aritmética, como é o caso da multiplicação por algum índice de correção (IGP-M, INPC, cotação do dólar norte-americano etc.), tal quantia passa a ser determinável e não determinada, impossibilidade inclusive sua execução, na medida em que a dívida nela inscrita deixaria de ser líquida e certa nos termos exigidos pelo art. 586 do Código de Processo Civil. Em que pesem tais argumentos, o Supremo tribunal federal posicionou-se em sentido contrário, ou seja, a adoção de índice de correção monetária no título não o desnatura, mantendo atualizados o crédito e o débito, não afrontando qualquer princípio de direito, muito menos norma expressa de lei não tornando incerta nem ilíquida a dívida. Hoje, no entanto, vige a Lei 10.192, de 14.02.2001, originada da Medida Provisória 1.053, de 30.06.1995, que, a pretexto de controlar o grave processo inflacionário pelo qual o nosso país atravessava, veda, até os dias de hoje, qualquer estipulação de pagamento expressa em ou vinculada a ouro ou moeda estrangeira, bem como incidência de correção monetária em periodicidade inferior a um ano. Dessa forma concluímos que não mais é possível a emissão de qualquer título de crédito em moeda estrangeira, mesmo que seu pagamento se dê em moeda nacional, bem como que a inserção de cláusula de correção monetária somente é possível se entre a data de sua emissão e o vencimento transcorrer prazo superior a um ano.
A propósito, cabe ressaltar que, nos termos da Lei 6.899/81, nas execuções fundadas em títulos de dívida líquida e certa, como é o caso dos títulos de crédito, o valor do débito deverá ser corrigido monetariamente, a contar do respectivo vencimento.
Nos termos do que estabelece o art. 5º da Lei Uniforme, o sacador pode fazer constar da letra a incidência de juros compensatórios sobre o valor a ser pago, desde que ser vencimento seja à vista ou a certo termo da vista (LU, arts. 34 e 35). Essa estipulação, no entanto, deixa de ser possível, pois o art. 890 do CC considera não escrita a cláusula de juros inserta no título.
Se constar na letra de câmbio a quantia devida por extenso em algarismos, e houver divergência entre ambos, prevalecerá a que estiver feita por extenso. Por outro lado, caso a quantia seja indicada mais de uma vez em algarismos ou por extenso, prevalecerá a indicação que contiver a menor quantia, tudo nos termos do art. 6º da Lei Uniforme.
c) O nome de quem deve pagar o título (sacado), que deverá estar definitivamente identificado, preferencialmente pelo número de sua cédula de identidade, inscrição no CPF ou CNPJ, título de eleitor ou pelo número de sua carteira profissional. Cabe ressaltar que não é com a simples emissão da letra que o sacado se obriga por ela – deverá ele proceder ao que se chama de aceite, ato pelo qual o sacado efetivamente se vincula a letra e se torna seu devedor principal.
d) O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem a letra deve ser paga (tomador), diante do que não existe a possibilidade de a letra ser emitida ao portador, devendo necessariamente conter o nome de seu beneficiário. Isso não significa que na prática negocial a letra não seja criada sem o nome do tomador. Nesse caso, caberá a complementação da letra antes de ser apresentada para protesto ou instruir eventual processo judicial de execução. Por outro lado, essa exigência fica bastante minimizada com a regra do art. 14 da Lei Uniforme, que preceitua que, havendo endosso em branco – sem a interdição do endossatário -, a letra se transmite por simples tradição.
e) A indicação da data em que a letra é sacada. A importância de se fazer referencia à data em que a letra foi sacada está relacionada com a necessidade de saber se àquele tempo, se o emitente tinha capacidade jurídica para assumir a obrigação; qual o vencimento da letra sacada a tempo certo da vista; se a letra for pagável à vista, qual o termo inicial da contagem de um ano para o prazo de sua apresentação etc.
f) A indicação do lugar onde a letra é tratada, sendo que, nos termos do art. 2º da Lei Uniforme, na falta de referida indicação do lugar, considera-se como se a letra fosse sacada no lugar designado ao lado do nome do sacado, por outro lado, na ausência de indicação do lugar, nos termos do § 2º do art. 889 do CC, “considera-se lugar de emissão e de pagamento, quando não indicado o título, o domicílio do emitente”.
g) A assinatura do sacador, vinculando-o à letra e à obrigação nela estampada. A assinatura deve ser feita de próprio punho, não sendo permitidas assinaturas litografadas ou processadas por qualquer meio mecânico. Tratando-se de pessoa jurídica, a assinatura deverá ser daquela pessoa que tem poderes para representá-las nos termos de seus atos constitutivos, cabendo falar em assinatura por procuração, ocasião em que um terceiro, munido de mandato outorgado pelo sacador, obriga-se em nome do mandante.
O art. 1º da Lei Uniforme faz referencia, como requisito indispensável da letra de câmbio, a indicação da época de pagamento, ou seja, qual a data em que o título deverá ser pago. Esse requisito, no entanto, não é indispensável, na medida em que consta no § 2º do art. 2º da Lei Uniforme que “a letra em que se não indique a época do pagamento entende-se pagável à vista” – sendo assim, se no título não constar a data de seu vencimento, a letra permanece válida como título de crédito, considerando-se seu vencimento à vista. Esse dispositivo é repetido pelo Código Civil, no § 1º do art. 889.

2.5 A cambial incompleta ou em branco

Nos termos do que estabelece o art. 10 da Lei Uniforme, bem como o art. 891 do CC, a letra que não contenha todos os seus requisitos necessários poderá tê-los preenchidos pelo seu portador, ocasião em que será considerado como mandatário do devedor, se o fizer de boa-fé. A propósito a jurisprudência firmou posicionamento no sentido de que “a cambial emitida ou aceita com omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da cobrança ou do protesto”.
Sendo assim, o portador que recebe letra faltando qualquer de seus requisitos poderá preenchê-la, presumindo-se estar praticando tal ato como procurador do sacador, desde que o faça de boa-fé. Dessa forma, aquele título que a princípio não continha todos os seus requisitos, e, se fosse apresentado para protesto ou cobrança, não teria os predicados inerentes aos títulos de crédito, passa a conter todos os requisitos essenciais para tanto.